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sábado, 11 de agosto de 2012

A capoeira como esporte


Na década de 60, a Bahia continuava sendo o centro nevrálgico da Capoeira. Mas, por essa época, muitos Mestres, atraídos pelas possibilidades econômicas do Sul, começaram a emigrar para o Rio de Janeiro e São Paulo. A Capoeira, aos poucos, espalhava-se pelo Brasil inteiro.
Fora de seu contexto geográfico e social, distante de suas raízes negras e baianas, a Capoeira já não pode ser praticada como uma manifestação artística espontânea, e tampouco estereotipada como folclore. Também não pode ser uma luta ao estilo de Bimba, que desafiava "qualquer lutador, de qualquer luta, a enfrentá-lo com sua Regional" (Itapoan, 1982, p. 16) e que treinava esquivando-se de pedras jogadas por seus alunos e de navalhas suspensas por um fio (Itapoan, 1982, p 39).
Começa então a ganhar popularidade a idéia de que, devidamente regulamentada, a Capoeira poderia ganhar um lugar junto às artes marciais orientais, já aceitas pela sociedade brasileira. Passaria, assim, a ser "a arte marcial brasileira", uma luta esportiva com competições regulamentadas.
Surgem, assim, em fins da década de sessenta, os primeiros campeonatos e tentativas de regulamentação da Capoeira. Em 1968 e 1969, realizam-se, numa base da Força Aérea, no Rio de Janeiro, o primeiro e o segundo simpósios brasileiros de Capoeira. Neles, tentou-se "criar uma única nomenclatura para os golpes, um único sistema de graduação de alunos, critérios para graduação de Mestres, tudo com a intenção de fundar federações de Capoeira (...) e transformá-la no ‘esporte nacional’” (Capoeira, 1985, p. 132). Naquela mesma época, realizam-se na Bahia os primeiros campeonatos de Capoeira.
Em 1972, a Capoeira é declarada "esporte" pelo Conselho Nacional de Desportos, e sua prática, como tal, é regulamentada oficialmente, através da Confederação brasileira de Pugilismo. Em 1974, é criada a primeira Federação de Capoeira em São Paulo, e em 1984, a segunda, no Rio de Janeiro. Falta ainda surgir outra, num terceiro estado, para que se possa criar a Confederação Nacional de Capoeira, livrando-a da tutela do pugilismo. Em meados da década de 70 realizam-se também os primeiros campeonatos nacionais de Capoeira.
Esse desenvolvimento da Capoeira/esporte acarreta várias conseqüências para a prática e a concepção vigente quanto a esta atividade. Entre elas, destacamos:

 

1) Uma crescente burocratização: A Capoeira, para poder ser considerada esporte, tem de ser competitiva e regulamentada (Capoeira, 1985, p. 147), tornando-se necessário, portanto, que existam associações, federações e uma confederação que, agrupando-as, consagre um regulamento único para a competição, o ensino da atividade e os critérios de graduação de Mestres. Tudo isso conduz a uma burocratização crescente e a uma submissão do esporte/luta à política oficial, já que as federações dependem, em última instância, do Conselho Nacional de Desportos.
Os torneios, a regulamentação e as federações provocaram uma grande controvérsia nos últimos 15 anos. Os torneios tiveram bastante aceitação, mas não a organização de federações. Em grande parte, os capoeiristas não estão filiados às duas existentes, por não estarem de acordo com o direito que elas se arrogam de deter o monopólio da fiscalização da prática. Como toda atividade de origem popular, não codificada, existem diferentes concepções em torno do que ela é e de como deve ser praticada e ensinada. Zelosos de sua individualidade -que a tradição da própria arte fomenta -, os Mestres não querem ser controlados por uma federação.

 

2) A incorporação de elementos das artes marciais orientais: A capoeira é definida globalmente como esporte mas, por suas características, é considerada uma luta. O uso predominante das pernas faz com que, dentro das lutas/esportes, seja equiparada às artes marciais orientais, mais do que ao boxe ou à luta greco-romana, por exemplo. Assim, é considerada a "arte marcial brasileira". Esta definição é vantajosa, já que apela não apenas para o nacionalismo mas também para a legitimidade que s outras artes marciais conseguiram. Ao tomá-las como modelo (consciente ou não) a ser imitado, a Capoeira incorpora elementos que as caracterizam: o uniforme branco, a prática de pés descalços, o uso de cordões para classificar diferentes etapas do aprendizado, a atitude séria e marcial durante os treinos, a saudação ritual (em posição marcial) no início e no fim da aula. Também foram acrescentados pontapés e golpes de mão que, tradicionalmente, não existiam na Capoeira, modificou-se a execução de certos golpes que já existiam, tornando-os "mais técnicos" (portanto, mais parecidos com os do karatê), introduziram-se técnicas de "defesa pessoal" e, às vezes, até são utilizadas "guardas" com nítida influência oriental durante os jogos e práticas. Os torneios também parecem estruturados dentro desse modelo, com quatro juízes, bandeiras para anunciar as faltas de cada praticante etc. É mantido o uso do berimbau durante a competição, mas com uma função meramente simbólica, já que parece não ter a menor influência sobre o jogo (que já não é um jogo, mas sim uma luta, com contato).
A “arte marcial brasileira”, então, para gozar do prestígio das outras artes marciais mais bem-sucedidas, precisa ser cada vez menos brasileira, perdendo suas características próprias e incorporando outras que lhe são alheias. Influi também, neste processo, o fato de que os mais fervorosos defensores da Capoeira/esporte são professores de educação física e/ou especialistas em alguma arte marcial oriental. Este currículo e esta influência são claramente observados numa recente publicação de difusão maciça sobre Capoeira (Pinatti e Oliveira Silva, 1984, cap. II), apresentando várias técnicas (especialmente pp. 14-24 e 50-65) que poderiam ter sido tiradas, foto por foto, de um livro de karatê:

 

3) Uma cooptação ideológica e política da arte pelo sistema: As raízes populares, negras e contraculturais da Capoeira se perdem para dar lugar a uma Capoeira que "é sinônimo de educação, cultura, civismo e saúde" (Pinatti e Oliveira Silva, 1984, II: Regulamento de Competição, p. 3). Segundo esta visão, a prática da Capoeira, “além de diversão, relax para quem apratica, ajuda a desenvolver o poder da vontade, a cultivar a cortesia, e patrocina a moderação da linguagem, coopera com a formação do caráter (...) (Senna, 1980, p13).

Este apelo extremado ao civismo se vê complementado por uma crescente intromissão do militar na prática do esporte/luta. Isto se nota, por exemplo no uso compulsivo do uniforme (que deve estar “bem dobrado, passado e limpo"); na postura marcial do "Salve"; na rígida hierarquização que se impõe com o uso dos cordões; nas exaltações da ordem máxima, disciplina rígida e respeito absoluto, a serem mantidos dentro fora  do Templo de Capoeira” (Senna, 1980, p.19, grifo nosso).

Há aspectos menos formais ou inocentes dentro dessa intromissão do marcial na Capoeira: o desenvolvimeto da Capoeira/arte marcial brasileira se produz durante os anos da última ditadura militar; as primeiras tentativas de homogeneização das práticas e regras (simpósios de 1968 e 1969) foram patrocinados pela Força Aérea; uma das primeiras tentativas de regulamentação e sistematização de Capoeira provém de um mestre que a ensina no Colégio Militar. Dirigentes das federações também foram acusados de tentar integrar a Capoeira (para conseguir alcançar sua legitimação e em troca de dádivas diversas) à ideologia política da ditadura militar que dominou o Brasil de 1964 a 1985 (Areias, 1983, p. 77; Capoeira, 1985, p. 155).

4) Concepções evolucionistas subjacentes. Para certo setor dos praticantes, essa evolução da Capoeira de luta "folclórica" a arte marcial/esporte, é uma evolução natural, necessária: "Em todas as partes do globo, cada povo possui um método mais ou menos elaborado de combater - autodefesa (...) que vai fazendo evoluir o progresso da civilização (...) " ( Senna, 1980, p. 11).

Segundo essa visão, a partir dessa modalidade de luta popular, que se desenvolveu de forma empírica - portanto considerada "inexata", "ingênua" -, chega-se ao que muitas vezes é denominado de "Capoeira objetiva". Nesta, supostamente, através do estudo dos movimentos e do conhecimento científico que possuímos do corpo humano, seriam alcançados movimentos e técnicas com um grau máximo de eficiência. O saber popular negro, "primitivo", deve assim ser substituído pelo conhecimento "científico" (não esqueçamos de que muitos dos novos Mestres são professores de educação física) que possuem as classes médias, brancas.

 

"A Capoeira é executada e praticada de forma empírica, intuitiva e perigosa. Seus participantes não se dão conta de que, racionalizada e com um método adequado, muitos seriam os resultados sociais,físicos e espirituais com que ela poderia contribuir decisivamente para a formação do elemento humano (...) Alcancemos o caminho da codificação da Capoeira como esporte e conseguiremos a posição a que chegaram todas as formas naturais de defesa pessoal de vários povos, as chamadas Artes Marciais, que passaram pelas mesmas fases de marginalização, lendas, crenças, fanatismo etc." (Senna, 1980, p. 14).

 

Essa concepção evolucionista (e tacitamente racista) está graficamente expressa em Capoeira: A Arte Marcial Brasileira, publicação de grande tiragem, escrita com a assessoria de dirigentes da Federação Paulista de Capoeira. O primeiro volume (Pinatti e Oliveira Silva, 1984, cap. I) consta de duas partes: Capoeira/Cultura e Capoeira/Esporte. Na apresentação da primeira, aparecem quatro capoeiristas negros e o professor, branco. Os capoeiristas negros ilustram aqui as formas como se entra no jogo (as "regras" não escritas), os movimentos básicos e os "movimentos em desuso" (que, parecem ignorá-lo, têm ainda plena vigência nas academias Angola de Salvador). A segunda parte, Capoeira/Esporte, está ilustrada por oito capoeiristas brancos, que mostram as formas de aquecimento (contribuição da educação física) e os movimentos de cintura solta(agarramentos e quedas) desenvolvidos por Bimba. A mensagem é muito clara: a Capoeira como cultura pertence aos negros (e aqui só entram os movimentos básicos, e outros já em desuso) e a Capoeira como esporte (com técnicas mais complexas e assessoria da educação física - o pré-aquecimento) pertence aos brancos. Seguindo esta linha, o segundo volume (Pinatti e Oliveira Silva, 1984, cap. II) desenvolve movimentos de ataque e defesa (luta) que são ilustrados por sete capoeiristas brancos e um mulato (o professor). Desses oito capoeiristas, seis são professores de educação física, confirmando a intromissão de uma disciplina na outra.
Essa versão da passagem da Capoeira, de cultura negra, para esporte branco é basicamente correta, faltando mencionar o fato de que se realiza uma valoração ideológica: a Capoeira como cultura é igualada ao"folclore" e este, estereotipado, como algo pitoresco, estático, do passado. Por isso se pergunta, na mesma publicação: "Será que [a Capoeira] sobreviverá e se massificará como manifestação exclusivamente folclórica? Quantas ‘academias’ de folclore se conhecem?" (A. Ghiberti em Pinatti e Oliveira Silva, 1984, cap. I, p. 65). A Capoeira, para estes autores, só pode sobreviver regulamentada como esporte, ou seja, obedecendo às pautas da classe dominante. Esta apreciação é mascarada como algo necessário, que está "na natureza das coisas".

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